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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Buenos Aires 100 Km

Buenos Aires
100 Km

Ronaldo Campos

Inicialmente, gostaria de responder uma pergunta que se repetiu muitas vezes antes e depois do Cineducação. Várias pessoas queriam saber quais foram os motivos que me levaram a escolher um filme argentino para exibir num evento de boas vindas aos alunos do curso de Pedagogia.
Em primeiro lugar, Buenos Aires 100 km é uma obra que recebeu vários prêmios internacionais e críticas positivas. O segundo motivo pode ser explicado da seguinte forma: esse filme teve um lançamento muito tímido no Brasil e foi praticamente ignorado pelo grande público (ficando restrito aos cinemas de arte e circuitos alternativos). O terceiro motivo (tem uma ligação direta com o anterior): o circuito comercial de exibição em território brasileiro é controlado por distribuidores que têm uma ligação direta com os grandes estúdios norte-americanos. Tal fato inviabiliza a exibição de filmes que não estão vinculados aos grandes estúdios de Hollywood. E, historicamente, os cineclubes foram (e ainda são) espaços ideais para exibir filmes alternativos. Além disso, o filme Buenos Aires 100 km é um drama calcado nas relações humanas com um bom roteiro e boas interpretações.
Muito se falou, na imprensa dedicada à arte cinematográfica, da capacidade do cinema argentino de produzir bons filmes, mesmo mergulhado em profundas crises econômicas. E não podemos fugir também da inevitável comparação entre a cinematografia brasileira e Argentina. Por este motivo, inicialmente, é importante tratar de algumas questões que marcaram decisivamente a trajetória do novo cinema da América Latina, especialmente, do Brasil e da Argentina.
As graves crises econômicas das décadas de 80 e 90 do século passado geraram alterações profundas na produção áudio-visual de países emergentes, como por exemplo, Brasil e Argentina. Certamente, para o cinema, o momento mais grave no território brasileiro foi o do governo Collor e, em especial, o episódio da extinção da Embrafilme. Logo após a sua posse, o então presidente da república, Fernando Collor de Melo rebaixou e transformou o Ministério da Cultura em Secretaria. Foi indicado o cineasta Ipojuca Pontes para ‘dirigir’ a cultura e, nessa mesma época, foram extintos os órgãos ligados à área: FUNARTE, EMBRAFILME e CONCINE.
Esse processo de desestruturação da intervenção do Estado no campo cultural e, em especial, cinematográfico, produziu um impacto fulminante. A produção e a exibição no Brasil diminuiu radicalmente, por exemplo, em 1992, os filmes nacionais (três filmes no total) tiveram um público de 36 mil espectadores. Esta situação só começou a ser alterada com o cinema da retomada, onde se destacaram Carlota Joaquina (1995) e Terra Estrangeira (1996).
Durante o governo neo-liberal do presidente Menem, coincidentemente, no período que abrange a última década do século XX, a Argentina vivenciou a mais grave e conturbada crise político-econômica que produziu o empobrecimento e o achatamento da classe média, além da gradual quebra de importantes instituições bancarias. Paradoxalmente, esse contexto de crise econômica não significou (como no caso brasileiro) a “destruição”, mas os argentinos viram nesse período a sua produção áudio-visual ganhar tanto espaço como reconhecimento mundial.
Tal aparente contra senso pode ser explicado com o seguinte argumento: no ano de 1995, foi sancionada uma nova lei que tornava obrigatório cinema e televisão captar recursos para financiar produções, estabelecendo também regimes de co-produção com países estrangeiros: essa política de fomento obtém capital através da taxação sobre os ingressos de cinema vendidos, a locação e venda de fitas de VHS ou DVDs e sobre a arrecadação das emissoras de TV. A partir daí a filmografia argentina encontrou um novo caminho. Essa nova legislação ajudou a incrementar de maneira efetiva os recursos para a produção e exibição de filmes. Os recursos foram ampliados de dois milhões de dólares em 1990 para 53 milhões de dólares no ano de 1997.
No final da era Menem, muitos jovens cineastas recém-saidos da FUC (Universidade Del Cine) produziram com o apoio das leis de incentivo bancadas pelo INCAA (Instituto Nacional de cine y artes audiovisuales). Essa nova geração (premiada) de roteiristas, diretores e produtores surgiu com ímpeto e vontade de renovar tanto a estética como a temática do cinema do país. Podemos citar alguns diretores e suas obras mais recentes: Juan José Campanella (“O Filho da Noiva”). Fabián Bielinsky (“Nove Rainhas” e “A Aura”), Lucho Bender (“Felicidades”), Lucrecia Martel (“O Pântano”, “A Menina Santa”, “A Mulher sem Cabeça”), Adolfo Aristarain (“Lugares Comuns”,), Pablo Trapero (“Família Rodante”), Daniel Burman (“O Abraço Partido”), entre outros.
Podemos definir esse novo cinema argentino como sendo um olhar vigoroso e contundente da realidade que vincula histórias cotidianas com questões públicas, procedimentos típicos do cinema de gênero e uma desenvoltura/leveza fora do comum no trato com as questões desse novo milênio. Mariana Bonfin (2009), no seu artigo intitulado “O novo cinema argentino”, afirma que é possível estabelecer algumas características comuns aos filmes lançados a partir da segunda metade do século XX.

Em primeiro lugar, a família, como forte instituição que deveria unir através de suas relações, mas que cada vez mais causa um afastamento saudosista e melancólico na sociedade. Em segundo temos a forte descrença e apatia do povo argentino depois de sucessivas crises econômicas, refletindo em atitudes desnecessárias e alienadas nas personagens dos filmes, tudo com diversas metáforas e disfarces. (BONFIM, 2009)

Buenos Aires 100 Km (Buenos Aires 100 kilómetros, 2004) é um exemplo recente da nova safra de cinema da Argentina. Foi lançado sem muito alarde e recebeu prêmios e críticas positivas nos diversos festivais em que participou. Filmado em seis semanas com um custo de 400 mil dólares, marcou a estréia do diretor, roteirista e produtor, Pablo José Meza.
O tema central desse filme é a passagem da infância à adolescência com foco principal no universo masculino. O diretor tem um olhar contundente da realidade aliado a um imenso carinho do pelos seus personagens e conflitos. Em várias entrevistas, Pablo José Meza disse que esse filme não pode ser considerado uma autobiografia, mas da mesma forma que Amarcord (1973), de Federico Felini ou Memórias (1980), Zelig (1983) e A era do rádio (1983), de Woody Allen, o seu Buenos Aires 100 km tem vários elementos autobiográficos.
A história se passa numa pequena cidade distante 100 quilômetros da capital Argentina. Nessa cidade estagnada pelas sucessivas crises econômicas do final século passado, cinco adolescentes vivem os seus conflitos e incertezas durante um tedioso verão. Todas as tardes, esses jovens se reúnem para dividir as suas experiências na escadaria de um salão de beleza feminino. Um deles é Esteban que sonha em ser um escritor, mas é obrigado pelo pai a fazer um curso de desenho técnico. O outro, Alejo, não sabe que a sua mãe tem um amante. E que essa história faz parte das mais picantes fofocas do lugar. O terceiro, Guido, acredita que o seu pai vai ficar rico, comprar um caminhão e uma casa na capital. Damián, o quarto adolescente, se revolta ao descobrir que é adotado. Matias, o quinto garoto, é negligenciado pelos pais e muitas vezes trancado fora de casa, sendo obrigado a dormir na soleira.
Os cinco adolescentes vivem uma época de incertezas, de novas perspectivas que se abrem e caminhos que chegam ao fim. Eles querem manter tanto o grupo como a amizade que os une, mas tudo corre perigo: crescem os problemas, intensificam o sofrimento, a cidade que os viu crescer parece se tornar cada vez menor e cada vez mais sufocante. Eles têm consciência que precisam escolher novos caminhos e entrar no mundo adulto.
De imediato, na longa cena de abertura (quando os garotos preparam balões cheios de água para jogar nos incautos passageiros de um ônibus), lembramos de um dos títulos seminais da nouvelle vague: Os Incompreendidos, de François Truffaut. Nessa obra prima do cinema francês, os jovens estão sempre envolvidos em confusões, daí podemos compreender que o sub título original (les quatre cents coups) é uma expressão idiomática dos franceses que podemos traduzir como pintar o sete. No filme francês, Antoine (muito parecido com Esteban) cansado do autoritarismo dos pais e da escola, busca refugio nos livros, nas amizades e na prática de pequenos delitos.
Para François Trufaut, a adolescência é reconhecida por pedagogos, educadores e sociólogos, mas negada pela família, pelos pais. Se o universo familiar nega a autonomia e liberdade para os jovens, forma-se o sentimento de injustiça e de revolta. O mundo passa a ser visto pelos jovens como algo injusto, então, é preciso fazer alguma coisa: “faz-se o que deseja, mesmo que isto seja proibido”, afirmou o diretor francês. Dessa forma, as travessuras realizadas pelos adolescentes podem ser vistas como atos de rebeldia e o lema que orientaria a vida dos jovens poderia ser resumido da seguinte forma: “é proibido proibir”. Não é uma rebelião sem motivos. O que é intenso na juventude é o desejo de viver e a percepção de que a vida dos adultos e a dos idosos não são necessariamente ideais para a juventude.
Sabemos que a escola tem por função cimentar o hiato entre a família e a sociedade, mostrando que existe (ou pelo menos deveria existir) uma continuidade entre a juventude e o mundo adulto. No filme de Meza, a história se passa durante as férias de verão, onde a escola não está presente (a não ser no caso de Esteban que ficou de “recuperação” e tem muitas tarefas para executar). Na produção Argentina, o conflito está centralizado mais nas relações familiares ou de amizade do que no universo escolar.
Longe da escola, esses cinco adolescentes têm o grupo juvenil para realizar a tarefa de construir uma ponte entre esses dois universos, mas, de modo diferente da escola, o grupo adolescente faz justamente o oposto: ele se baseia na autonomia dos adolescentes e busca enfatizar a identificação entre os seus membros, valorizando o modo de vida e a defesa de determinados pontos de vista. Certamente, não há aqui uma coincidência entre o estilo e a ideologia propagada pela oficialidade.
Etimologicamente, adolescência é um temo de origem latina (“ad-olescere”) que significa “crescer para”: “crescer da infância para a vida adulta”. Historicamente, a adolescência passou a existir de fato após a Revolução Industrial. Sabemos também que a acepção de adolescência (ou de juventude) não pode ser considerada de forma alguma como sendo um conceito universal. O traço distintivo que pode ser visto de maneira global limita-se, basicamente, a um certo tipo de passagem de um determinado estado reconhecido pelo grupo social como infantil para um estado adulto.
A juventude / adolescência também pode ser vista como a Idade de Ouro para a qual os sonhos se voltam. É muito comum nessa época da nossa vida, sonhar com o futuro que queremos. Em alguns casos, sofremos com a pressão familiar (ou social) que impõe ou uma carreira já consolidada pelos pais (o pai médico ou engenheiro deseja que o filho também siga a sua profissão) ou uma profissão que trará ascensão social ao grupo familiar. E nesses casos, o jovem se perde entre as várias possibilidades e a realidade. Guido, por exemplo, tem uma existência difícil: ele não freqüenta a escola e tem que ajudar o pai (um caminhoneiro grosseiro) na entrega de frutas e legumes. O jovem idealiza tanto o pai como o futuro que terá. Esteban freqüenta a escola (e “tem” que realizar o sonho do pai: ser o projetista de todos os edifícios da cidade), mas sonha com uma carreira que não é vista como segura ou promissora (viver como escritor). Os sonhos de Esteban e de Guido são na verdade projetos para a vida adulta. Ao estabelecerem como parâmetros, os valores antes considerados perenes (durante a infância) são colocados em questão. Um adolescente pode (re)ver tais princípios ou projetos, mesmo porque ele ainda não possui (de maneira consolidada e estabelecida) nem uma vida amorosa nem uma vida profissional ou financeira.
O filme de Meza nos mostra que muitas vezes não ocorre a coincidência entre o desejo e sua realização. Damián sabe que a vida confortável na capital (proporcionada pelo pai) não se realizará concretamente. Quanto aos sonhos de Esteban, o diretor deixa em suspenso. Não sabemos se ele de fato vai se tornar um grande escritor ou vai seguir os desejos do pai. Assim, como os meninos do filme, também tivemos muitos sonhos. E a quase totalidade deles não se realizou. Mas, não importa se o sonho não se concretizou efetivamente, a formulação do desejo em si mesmo já é uma forma de realização. Pois, passada a fase da juventude e ao recordamos os nossos devaneios juvenis, percebemos que a lembrança desses sonhos nos traz a própria realização dos nossos desejos: a possibilidade dele ser expresso.
O ser humano precisa sonhar. E muitas vezes sonhamos com o impossível, com o inalcançável, mesmo cientes da impossibilidade da sua realização, percebemos que esse desejo ou o sonho é o fato que cria uma determinada força para prosseguir com o nosso dia a dia. O próprio cinema é uma forma de realizar certos sonhos e projetos que não serão concretizados de fato. Como Esteban podemos construir (escrever / imaginar) histórias que só irão existir na nossa mente, ou seja, podemos viver através do cinema (ou da literatura) vidas que não são as nossas, mas, no momento em que assistimos o filme, essa vida (essa fantasia) passa a ser nossa também.
Jose Pablo Meza com essa obra se integra ao time de grandes realizadores cinematográficos que trataram da infância-adolescência. Ao nos identificarmos com os seus personagens, ele nos propõe a utopia de sermos eternamente jovens (pelo menos naqueles noventa minutos que ficamos imersos pela atmosfera do seu filme). Ele nos dá a lente da imaginação para observar o mundo dos adulto. E, assim, somos transportados para uma época, a juventude, o período do ócio: a época de podermos ter desejos e projetos para (e que serão lembrados por) toda a nossa vida.

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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Graduado nos cursos de Filosofia e História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Filosofia da Arte e Estética pela mesma Universidade. Atualmente sou professor assistente b do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). Tenho experiência na área de Filosofia, com ênfase em História e Filosofia da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: fundamentos filosóficos da educação, introdução ao pensamento científico e filosofia da ciência, cinema e artes visuais, aspectos formais da arte, criatividade, processo de criação, estética da formatividade de Luigi Pareyson, cultura e modernidade brasileira.