No dia 08 de novembro de 2011, participei do envento Cinema no GSS, da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pela prof. Adla B. M. Teixeira. A,discussão em torno do filme foi muito produtiva. Abaixo transcrevo o texto que orientou a minha fala. Esse texto também foi publicado no blog "Aprender, (des)aprender, (re)aprender".
Em nome de Deus (The Magdalene Sisters)
texto de Ronaldo Campos
O filme Em nome de Deus (The Magdalene Sisters) foi baseado em fatos reais que foram apresentados pela primeira vez no documentário produzido para o Channel 4 e intitulado Sex in a Cold Climate (1998, direção: Steve Humphries, 50min). Quando da sua exibição causou um forte impacto em todos que o assistiram, inclusive em Peter Mullan que, depois de entrevistar ex-cativas dos reformatórios, escreveu e dirigiu Em Nome de Deus, em 2002, na Irlanda. No mesmo ano, foi o grande vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, conquistando crítica e público, mas também enfrentou a ira da Igreja Católica que não concordava com o modo negativo como as freiras e o catolicismo são retratados.
O título original The Magdalene sisters poderia ter sido traduzido literalmente como “As Irmãs de Maria Madalena”. Há aqui uma referência direta à figura bíblica de Maria Madalena, a prostituta que teria lavado os pés de Jesus Cristo e conseguiu se redimir, pagar pelos seus pecados na terra e entrar no reino do céu. E Magdalene é também o nome dado aos asilos-reformatórios (no original, Magdalene asylums) que recebiam moças desviadas e marginalizadas socialmente. Esses asilos, chamados de lares Madalena, na Irlanda, eram de responsabilidade das Irmãs da Misericórdia, em nome da Igreja Católica. Trinta mil mulheres passaram por esses reformatórios. Muitas viveram e morreram esquecidas pelos seus familiares e pela sociedade nesses Lares.
Sem ser uma obra tão rude e perversa como Dogville (2003), do dinamarquês Lars Von Trier, o trabalho de Mullan, apesar de ser bastante linear, tem conteúdo forte o suficiente para provocar naquele que assiste o sentimento de indignação frente aos abusos provocados por um sistema desumano controlado e dominado pela ideologia cristã de mulheres celibatárias.
O diretor nos apresenta três jovens mulheres que foram internadas numa destas casas no ano de 1964: Margaret (Anne-Marie Duff), Bernadette (Nora-Jane Noone) e Rose (Dorothy Duffy). Na Introdução do filme, descobrimos os crimes cometidos por elas: Margaret foi condenada por ter sido estuprada pelo primo e não esconder o fato dos pais e da sociedade; Bernadette, uma moça muito bonita que atrai os olhares masculinos, não se preocupou em esconder sua beleza e sensualidade; Rose contrariou os costumes conservadores e engravidou antes do casamento (ela é obrigada a entregar o seu filho para adoção e não tinham o direito nem de dar adeus a ele e muito menos manter qualquer tipo de contato).
Portanto, para ser internada num dos Lares Madalena bastava ser mãe antes do casamento, ser bonita\sensual (e ter consciência do fascínio que essa sensualidade provoca nos homens) ou feia demais, retardada mentalmente\ignorantes ou inteligentes, ou vítimas de estupro, em fim, bastava ser mulher e agir de forma oposta as regras socialmente estabelecidas. Por tais crimes e pecados, elas trabalhavam 364 dias por ano (só descansavam na noite de natal), sem qualquer tipo de remuneração. A irmã Bridget era a chefe de todos, e ela punia as meninas se falassem com alguém de fora, se tentassem fugir, se desobedecessem as irmãs e se conversassem durante o trabalho. Trabalhavam o dia inteiro e comiam uma comida bem inferior a das irmãs. Além disso, eventualmente, algumas delas eram obrigadas a prestar certos “favores” sexuais ao padre.
Essas moças viviam um verdadeiro inferno, pois, eram mal alimentadas, surradas, humilhadas, estupradas, e seus filhos levados à força. A história dessas mulheres evoca atos, aspectos e ideias de tempos remotos: a história delas é apresentada como se fosse um terrível pesadelo com matizes inspirados nos atos do Tribunal do Santo Ofício (a Inquisição). Toda dor ou sofrimento não é percebido. Essas moças foram esquecidas e abandonadas a sua própria sorte. E a sociedade irlandesa por sua vez age como se fosse um pendulo ora oscilando entre um silencio cruel ora apoiando ativamente o estado teocrático (esse apoio ocorre quando uma dessas moças foge para casa e o pai a traz de volta de maneira truculenta e aos berros avisa que ela não tem mais família).
O curioso dessa história é que as freiras não tinham poder legal para enclausurar as meninas, as freiras o faziam porque ninguém as desafiou. Há uma cena que um homem que procura a irmã por quatro anos, entra no asilo-reformatório munido apenas por uma carta de um padre e leva a moça de volta para casa sem ter que fazer praticamente nada (não há nenhuma burocracia para retirá-la)
Como explicar atitudes tão reacionárias, em plena década de sessenta que é por muitos considerada como o período de uma incontestada revolução\liberação feminina? Como entender (e aceitar) que na Irlanda, a população era obrigada a conviver com tamanho desrespeito às minorias e às mulheres?
É sabido por todos que a Irlanda vive um sério conflito de base fundamentalista cristão. Lá católicos estão em conflito com os protestantes e esse impasse já produziu várias guerras e inúmeros de atos terroristas. Provavelmente, todo esse conservadorismo (reacionário) religioso era potencializado por questões econômicas inerentes a um país pobre (dividido e em “guerra interna”), que enfrentou longos períodos de fome em massa e de grande contingente de desempregados que por sua vez contribuíram para a formação de uma sociedade conflituosa, cheia de ranços. de comportamentos agressivos, repugnantes e intolerantes, que se apegou ao fundamentalismo religioso (católico-cristão) como válvula de escape.
O que pode nos levar a compreender a persistência de atitudes tão reacionárias é justamente a motivação econômica por detrás de todo discurso moralizante presente na sociedade irlandesa de meados dos anos sessenta do século passado. Torna-se interessante observar a cena em que as três jovens chegam ao reformatório e são apresentadas a irmã Bridget. Nessa cena, o diretor utiliza uma montagem que “brinca” com aquilo que se diz e aquilo que se faz nos Lares Madalena, ou seja, ao mesmo tempo que a irmã explica através de um discurso com forte teor religioso todas as motivações da sua instituição filantrópica, a câmera nos mostra o que ela faz e o que motiva (e garante) a existência de tal instituição católica: a madre separa, conta e guarda uma grande quantidade de dinheiro que foi obtida graças ao trabalho compulsório dessas moças desviadas e marginalizadas socialmente.
A origem desses asilos-reformatórios remonta ao século XVIII. Em território irlandês, o primeiro foi criado para crianças protestantes em Leeson Street, em Dublin, no ano de 1765. Na Irlanda, a Igreja Católica se apropriou da missão de conduzir esses asilos-reformatórios logo após a emancipação católica em 1829. Inicialmente, essas instituições eram destinados a serem refúgios de curto prazo para mulheres de moral duvidosa. Mas com o tempo foram se transformando em instituições de longo prazo, onde as residentes eram obrigadas a trabalhar em lavanderias para garantir a manutenção das casas. Os lares Madalena eram casas autossuficientes que não recebiam recursos e nem eram financiadas pelo poder estatal ou por denominações religiosas.
A ideia de resgate e reinserção social (conseguir trabalho para as ex-prostitutas) foi gradativamente abandonada e os asilos se tornaram verdadeiras prisões para qualquer tipo de mulher que era considerada (ou “classificada”) como uma “mulher caída”. (termo usado para indicar a promiscuidade sexual e o caráter moral inadequado, semelhante ao das prostitutas). Contudo, o período que o filme retrata, as motivações religiosas se tornaram secundárias, evidenciando que esses lares-reformatórios permaneciam muito mais por questões econômicas. As internas eram submetidas a todo tipo de tortura e trabalho forçado em lucrativas lavanderias. Esse tipo de estabelecimento começou a dar sinais de enfraquecimento no final dos anos 70, com o surgimento das máquinas de lavar doméstica, quando inúmeros dos seus clientes deixaram de utilizar os serviços das freiras, o que fez com que paulatinamente os lares Madalena foram deixando de existir. Na década seguinte, sem tantas encomendas e com grande dificuldade em conseguir mão-de-obra (quase) escrava, pois as mulheres finalmente passaram a conhecer os seus direitos. Mesmo assim, as lavanderias foram mantidas com o trabalho de mais ou menos cinquenta mulheres até o dia 25 de setembro de 1996.
Desde 2001, o governo irlandês reconheceu que as mulheres na Lavandarias da Madalena foram vítimas de abuso, mas esse mesmo governo se recusa a realizar investigações mais aprofundadas e indenizar todas a vítimas afirmando que os lares e lavanderias Madalena eram geridas pela iniciativa privada, assim todos os abusos estariam fora da competência governamental.
Em nome de deus não foi a única reação de indignação gerada após a descoberta de tantos abusos. Outros filmes, livros, músicas, peças teatrais e poemas também foram produzidos nesses últimos anos. O filme de Peter Mullan provavelmente foi o que teve a maior repercussão. Um dos motivos do êxito desse diretor (que também é ator e roteirista) está na sua irreverência e na ausência de concessões.
Nessa atmosfera claustrofóbica (emoldurada por uma fotografia escura, onde predominam os tons marrons e ocres), há ainda espaço para momentos de poesia e delicadeza, como por exemplo, na cena da sessão de cinema apresentada no dia de natal. Mulla presta uma nostálgica homenagem a própria história do cinema, quando exibe Os sinos de Santa Maria (The bells of St. Mary´s, direção: Leo McCarey, 1945). Após a apresentação dos créditos iniciais desse filme, deparamos com a beleza clássica da atriz sueca Ingrid Bergman. Ela ficou famosa em Hollywood por filmes como Casablanca, Joana D´arc, À meia luz, Anastácia, a princesa esquecida, entre outros.
Mas, a escolha desse filme dentro do filme não foi aleatória. Ingrid Bergman pode representar a mulher que cai em tentação e consegue ser reabilitada. Isso pode ser explicado da seguinte forma: em 1948, ela conheceu os filmes do diretor italiano Roberto Rosselini (Roma, cidade aberta e Paisá) e através de uma carta, se colocou a disposição do diretor para trabalhar em seus próximos filmes. Essa ligação profissional se tornou pessoal. Mas ambos ainda eram casados quando Ingrid ficou gravida de Rosselini. Essa relação e esse filho fora do casamento provocou um grande escândalo nos Estados Unidos e Ingrid pagou caro por suas atitudes. Ela que antes era vista como um exemplo de comportamento e como uma das mulheres mais bem casadas do cinema, passou a ser considerada uma pecadora, pois, na década de quarenta, mesmo que o seu casamento fosse de fachada o importante era manter a moral aparente. Ou seja, o público que tinha se acostumados a vê-la como freira ou santa, não aceitou o fato dela engravidar de um outro homem quando ainda estava casada com o primeiro marido. Para os americanos, seu comportamento era imperdoável. Além de massacrada pela Igreja, sofreu duras críticas da imprensa, foi proibida de ver sua filha mais velha (Pia, de 10 anos de idade) por mais de um ano, seus fãs a chamavam de vagabunda e até um senador chegou a declarar que a atriz era “uma poderosa influência do mal” para a América, foi denunciada como pecadora no próprio congresso americano e durante anos ficou proibida de voltar à América.
Mas, diferentemente, da atriz sueca que retorna triunfalmente para Hollywood (e é “perdoada” pelo público, crítica e indústria cinematográfica) em 1956 com o filme Anastácia, a princesa esquecida, que lhe garantiu o seu segundo Oscar (o primeiro foi o de melhor atriz em 1944 com À meia luz e o terceiro agora como atriz coadjuvante em 1974 com o filme Assassinato no Orient Express), as mulheres do asilo Madalena nao conseguem escapar. E mesmo quando encontram o portal aberto elas não sabem o que fazer (como agir) com a liberdade. Afinal de contas foram longos anos de muito sofrimento, de privação e de anulação da sua humanidade. Elas se tornaram objetos sem vontade própria. Esse processo de coisificação é mostrado de forma evidente na cena em que as irmãs mandam que elas tirem a roupa e se alinhem em fila. É, nessa posição, que tem início um jogo perverso de humilhação e submissão, onde as irmãs de caridade promovem um concurso para decidir qual tem os maiores e os menores seios, a mais peluda, o maior bumbum. Cada escolha não tem por objetivo valorizar o que é mais bonito ou mais harmônico. As moças vão se sentindo cada vez mais deslocadas como monstros anormais condenados para sempre ao escarnio de toda a sociedade.
Assim, quando os créditos finais aparecem (mesmo que algumas garotas conseguiram fugir desse pesadelo e reconstituir a sua vida) ficamos com a impressão de que no mundo que nasceu sob a égide a revolução francesa os direitos inalienáveis ainda são um luxo para a maioria da população. Quantas mulheres, crianças, gays e outras minorias ainda são condenados simplesmente por serem (ou agirem de forma) diferente daquela que está socialmente estabelecida.
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