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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A fogueira do oiticica

(Texto de Ronaldo Campos)


No último sábado (dia 17 de outubro de 2009), fiquei paralisado diante da TV. Isto não ocorreu totalmente pela guerra entre traficantes cariocas que acabou por abater um helicóptero e espalhar o terror por toda a região. Eu sei da gravidade desse fato, mas também acredito que o que ocorreu foi em decorrência da ausência do Estado nessas comunidades e da própria estrutura do tipo de capitalismo instalado no nosso país. Toda essa onda de terror é algo que já esperávamos acontecer um dia. Basta lembrarmos de filmes como Cidade de Deus ou Tropa de Elite, onde o confronto é eminente e inadiável. Quando essas obras cinematográficas foram lançadas ninguém se queixou da falta de plausibilidade de tais narrativas, ou seja, para a grande maioria das pessoas um confronto de grandes proporções era totalmente possível.
O que me deixou bastante atônito foi o incêndio que destruiu noventa por cento da obra de Hélio Oiticica. Como o Estado e os herdeiros foram deixar que uma parte importante da nossa memória se perdesse para sempre. O pior é que para uma parcela considerável do nosso povo, a obra e a história de Oiticica não tem nenhuma relevância. Para muitos brasileiros, essa história não é a história deles.
Todos sabemos que a memória coletiva de um país é feita por elementos que periodicamente são re-significados (ou seja, são lembrados e revividos por todos ou por grande parte da população) e outros que são esquecidos. Um exemplo disto pode ser retirado da ação dos núcleos de patrimônio dos nossos Estados e cidades. Será que ninguém nunca se perguntou o motivo que levou a preservar um determinado prédio enquanto outros são destruídos? Será que ninguém nunca achou estranho que aquele belo sobrado do inicio do século XX foi demolido para dar origem a um estacionamento sem graça ou charme? Será que ninguém nunca se perguntou por que naquele bairro elegante várias residências em estilo art nouveau ou art déco foram demolidas para dar origem a mais um shopping center de estilo monótono e sem graça? Será que ninguém nunca se perguntou por que tais casas não foram tombadas pelo patrimônio histórico e artístico? Será que ninguém nunca se perguntou por que o tombamento só ocorre (ou ocorre na maioria das vezes) com prédios oficiais e/ou em áreas onde há fluxo de turistas? Será que ninguém nunca se perguntou por que no Brasil se preserva a arte colonial-barroca, mas não há o mesmo interesse por aquilo que foi realizado durante o século XX? Será que ninguém nunca se perguntou por que algumas coisas devem ser lembradas e outras são esquecidas?
Acredito que para fazer parte da memória e da identidade nacional esses movimentos, obras e idéias devem ser apropriados pelo povo.
Mas como fazer isto se hoje em dia vivemos num marcado pela massificação e globalização dos sistemas de informação? Ou seja, um garoto de 12 anos tem muito mais chance de conhecer a história da música norte americana do que a musica popular produzida no Brasil. Na Internet, nas lojas, livrarias e bancas de jornais, é muito mais fácil encontrar algo sobre Frank Sinatra ou Stan Getz do que sobre a Nara Leão, Quarteto em Cy ou Sylvia Telles. Isto em parte ocorre devido ao fato de que os grupos de produção e divulgação de bens culturais estão nas mãos do capital internacional. Não adianta fazer um filme se ele não for visto/distribuído. A distribuição sempre (ou pelo menos na maioria das vezes) privilegia o produto da grande industria. Os nossos filmes, músicas ou textos (na maioria dos casos) não tem o mesmo cuidado e empenho das distribuidoras que estão sob controle das empresas transnacionais. Por exemplo, quando entro numa loja de cds posso comprar toda a discografia da Madonna, mas não consigo comprar nem 10% da obra de Nara Leão ou de Sylvia Telles. Eu tenho acesso à praticamente todas as obras de Marcel Duchamp ou Andy Warhol através de livros ou sites, mas não tenho o mesmo acesso (ou facilidade) com relação a obra do próprio Oiticica e da Lygia Clark.
O fato acima citado poderia explicar o motivo que leva a história do Oiticica não ser a história de todos. Mas devemos lembrar que muitos herdeiros acreditam que a obra herdada é uma fonte de renda. Eles cobram por tudo. O próprio jornal “Folha de S. Paulo”, do dia 11 de setembro de 2009, relatou o caso de um site que vende e vigia o direito de imagens de obras. E, nesse artigo, fica claro que mesmo o colecionador que é dono da obra não tem o direito de imagem da obra. A família pode “negociar” esse direito para que o filme, o livro ou a exposição seja realizado. Isto significa que se for feito um livro ou uma exposição de um determinado artista só poderá utilizar imagens das obras se a família assim o permitir. A tal família que é guardiã das obras e dos direitos das mesmas acaba inviabilizando vários projetos. Os herdeiros podem não gostar do que foi feito. Roberto Carlos não conseguiu que a justiça retirasse de circulação milhares de exemplares da sua biografia não-autorizada? O famoso cantor é de fato dono da sua história, mesmo que essa história foi compartilhada por milhares de pessoas através dos jornais, revistas, rádio e televisão? Se a obra de um artista não estiver em circulação como é possível estabelecer um pacto com publico fruidor? E como o povo brasileiro pode se apropriar da história de Oiticica se essa mesma história não chega até eles?
Mais uma vez eu questiono: ninguém nunca se perguntou por que nas ultimas décadas os poemas de Cecília Meireles ou as histórias de Guimarães Rosa não fazem mais parte dos livros didáticos escolares? Se ninguém nunca se perguntou por que a Rede Globo não reprisa mais a belíssima mini-série “Grande Sertão Veredas” e nem produz outras obras desse grande escritor mineiro?
Eu me atrevo a responder que há aqui um grande embate de interesses entre aqueles que produzem (filmes, exposições ou livros) e aqueles que são os donos-herdeiros dessas obras de arte. No artigo acima citado tal cobrança é justificada da seguinte forma: “é uma maneira de a família conseguir fazer a manutenção do acervo, coisas que tem custo.”
Mas se a obra não for exibida, se o poema não for lido como é possível gerar o que quer que seja para manter viva essa memória? Se a criança quando é inserida no processo de ensino-aprendizagem não tiver contato com Carlos Drummond ou com Cecília Meireles como ela vai saber se gosta ou não da obra desses grandes mestres?
Sou obrigado a fazer outra pergunta: de que adianta uma obra maravilhosa como a de Drummond, Oiticica ou de qualquer outro grande pensador/artista brasileiro se ela ficar trancafiada e amontoada numa sala de uma residência qualquer? A obra de arte só tem sentido quando ocorre a fruição. A obra do Oiticica não foi pensada para ficar guardada, isolada. Ela exige participação e integração com o fruidor para se realizar plenamente. Eu não entendo por que essas obras estavam na casa da família do artista e não num museu.
No jornal “O Globo” do último domingo (18/10/2009), a obra de Oiticica que antes estava abrigada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica da prefeitura, foi retirada de lá a partir de 2002 pela família, “sob alegação de que o prédio não tinha condições básicas de segurança [...], não há controle de umidade e de temperatura, e nem fiscalização.” Se a família retirou a obra desse local é devido o fato que eles possuem as condições necessárias para preservar e gerir a obra do artista. Mas, não foi isto que assisti atônito diante da TV. Eu vi destroços queimados e retorcidos. Vi um vestígio pálido e distante do que um dia foi grandioso e imponente. Muitas daquelas obras, eu só conheci através de descrições em livros de artes. Outras foi conhecida através de antigas reportagens dos jornais da época. Como eu gostaria de ter dito o prazer de estar diante daquelas obras. Mas, isto me foi negado. Afinal, os herdeiros resolveram mantê-las “em segurança” e distante de todos.
Por isto, faço questão de repetir que o meu choque maior foi saber que 90% da obra desse importante artista não estava sob a guarda de um museu, com pessoas que são especializadas em garantir a sua integridade. Será que a família do Oiticica nunca ouviu falar que cidades como São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e outras até bem menores como Brumadinho em Minas Gerais possuem museus com capacidade para preservar, garantir a visibilidade dessas obras e proporcionar a fruição que o artista almejava quando planejou e executou os seus projetos.
Mais uma vez eu me atrevo a dizer que enquanto as famílias e herdeiros se julgarem no direito de determinar o que (quando e onde) vai ser visto ou não, muitos outros problemas poderão ocorrer.
Eu não pretendo aqui negar o direito dos herdeiros. Mas, acredito que essas pessoas devem ter limites para agir. O que não podemos admitir, por exemplo, é que o dono de um determinado imóvel (importante para a nossa história e identidade cultural) possa ter o poder de destruí-lo assim que o desejar. Será que ninguém mais se lembra da destruição dos budas gigantes pelo Taliban? Esse grupo que dominava o Paquistão era o herdeiro legal de tudo o que estava naquele país, então, em nome dessa posse eles podiam determinar quem vai ter acesso ou não e quais obras merecem ser preservadas?
Eu sei que somos livres. Mas, essa liberdade não é uma liberdade sem limites. A nossa ação tem conseqüências não apenas para nós que a desencadeamos, mas para muitos indivíduos (alguns que nem ao menos sabemos quem são). Por isto, ao destruir os Budas ou impedir que um poema seja publicado num jornal estamos impedindo o desenvolvimento da sensibilidade de uma determinada pessoa.
O que espero de uma pessoa (família ou grupo) que tem o poder de gerir a obra de um grande artista é que tais pessoas criem um campo de possibilidades para que essa obra exista. Para existir é necessário primeiramente que a obra seja exibida, que tenha visibilidade.
Em parte, concordo com Waltércio Caldas quando disse que o que falta é uma política nacional de aquisição e preservação de obras de artes. Mas essas obras não estavam no Centro Helio Oiticica? A família não rechaçou a idéia de deixar o acervo em comodato nesse centro? Segundo o jornal “O Globo”(acima citado), “a família queria todo poder sobre a obra, recebia R$20 mil mensais e cobrava pelas exposições”.
Se as obras estivessem no lugar onde deveriam estar – o centro Helio Oiticica- não poderíamos ter evitado a tragedia? Ou será que a única solução é vender tudo para museus e galerias?
Eu acredito que a solução poderia estar em dois exemplos concretos. O primeiro é o de Ângela Gutierrez que presenteou a população brasileira com três belos museus: um dedicado aos oratórios, outro com uma grande coleção de imagens de Santana e, por fim, o Museu de Artes e Ofícios. Outro exemplo é o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim. Uma iniciativa particular que está aberta e acessível a todos.
Todas as obras em exposição nesses lugares podiam estar trancadas em alguma fazenda ou residência, mas, pelo contrário, estão abertas, vivas, disponíveis para serem contempladas, interrogadas, analisadas...

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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
Graduado nos cursos de Filosofia e História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Filosofia da Arte e Estética pela mesma Universidade. Atualmente sou professor assistente b do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). Tenho experiência na área de Filosofia, com ênfase em História e Filosofia da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: fundamentos filosóficos da educação, introdução ao pensamento científico e filosofia da ciência, cinema e artes visuais, aspectos formais da arte, criatividade, processo de criação, estética da formatividade de Luigi Pareyson, cultura e modernidade brasileira.