“O conceito de testemunho desloca o ‘real’ para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo excepcional e que exige um relato. Esse relato não é só jornalístico, reportagem, mas é marcado também pelo elemento singular do ‘real’. Em um extremo dessa modalidade testemunhal encontra-se a figura do maártir – no sentido de alguém que sofre uma ofensa que pode significar a morte –, termo que vem do grego márture e significa testemunha ou sobrevivente (como o superstes latino”) por um lado, manter um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que viveu um ‘martírio’ pode testemunhar; a literatura sempre tem um teor testemunhal. E, por outro, o real é – em certo sentido, e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo – sempre traumático.”1
“Pensar sobre a literatura de testemunho implica repensar a nossa visão da História – do fato histórico. Como lemos em George Perec – autor de W ou a memória da infância – ‘o indizível não está escondido na escrita, é aquilo que muito antes a desencadeou” (nota 2) A impossibilidade está na raiz da consciência. A linguagem/escrita nasce de um vazio – a cultura, do sufocamento da natureza e o simbólico, de uma reescrita dolorosa do ‘real’ (que é vivido como trauma”.2
“Aquele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o ‘indizível’ que a sustenta. A linguagem é antes de mais nada o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência. O mesmo Perec afirma ainda: ‘sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles [os pais de Perec, assassinados pelos nazistas] e do meu silêncio [...] A lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e afirmação de minha vida.”3
“A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmo. A linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato de sua recepção.”4
“Para Benjamimn, o choque é parte da vida moderna: a experiência agora deixa de submeter-se a uma ordem contínua e passa a estruturar-se a partir das inúmeras ‘interrupções’ que constituem o cotidiano moderno.”5
“ [...] Lacan descreveu a constituição do simbólico como um passo anterior à constituição do ‘real, na medida em que este constitui o âmbito do que fica fora da simbolização”. Para ele, ‘o que não veio à luz do simbólico aparece no real’ (nas palavras de Lacan: ‘Ce qui n´est pas venu au jour du symbolique, apparaît dans lê réel’ (nota6) ). O real reste ao simbólico, contorna-o, ele é negado por este –, mas também reafirmado ex negativo. O real manifesta-se na negação: daí a resistência à transposição (tradução) do inimaginável para o registro das palavras[...]”6
“A memória só existe ao lado do esquecimento: um complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve. Esses conceitos não são simplesmente – como Nietzsche já o sabia – tão necessária quanto a memória e que é parte desta. O geógrafo Pausânias narra que, na Beócia, o rio do Esquecimento, o Lete, corria ao lado da fonte da Memória, Mnemósina. Segundo os antigos, as almas bebiam do rio Lete para se livrar da sua existência anterior e posteriormente reencarnar em seu novo corpo (como se lê em Virgilio, Eneida, VI, 713-16). Para o sobrevivente, a narração combina memória e esquecimento”7
“O texto de testemunho também tem por fim um culto aos mortos. Não por acaso, esse culto está na origem de uma antiqüíssima tradição da arte da memória ou da mnemotécnica (ars memoriae).”8
“A historiografia – ou seja, a história como narração, disciplina ou gênero possuindo suas regras, suas instituições e os seus procedimentos – não pode [...] substituir-se à memória coletiva nem criar uma tradição alternativa que possa ser compartilhada. Mas a dignidade essencial da vocação histórica permanece, e o seu imperativo moral parece-me ter hoje em dia mais urgência do que nunca. No mundo que é o nosso não se trata mais de uma questão de decadência da memória coletiva e de declínio da consciência do passado, mas sim da violação brutal daquilo que a memória ainda pode conservar, da mentira deliberada pela deformação das fontes e dos arquivos, da invenção de passados recompostos e míticos a serviço de poderosos tenebrosos. Contra esses militantes do esquecimento, traficantes de documentos, os assassinos da memória, contra os revisores das enciclopédias e os conspiradores do silêncio, contra aqueles que, para retomar a imagem magnífica de Kundera, podem apagar um homem de uma fotografia para que não fique nada senão seu chapéu, o historiador, apenas o historiador, animado pela paixão austera dos fatos, das provas, dos testemunhos, que são o alimento da sua profissão pode velar e montar guarda.”9
“Se o século XIX sofreu de ‘história de mais’, a nossa pós-modernidade sofre de ‘fim da história’, de ‘fim da temporalidade’, em suma, parafraseando Vidal-Naquet, ela sofre do ‘inesistencialismo’. A tarefa da memória deve ser compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva como também pelo registro (acadêmico) da historiografia”.10
“O grande trabalho de preservação da memória do acontecido e dos sofrimentos cabe aos que procuram, através da análise e reavalização dos dados, tornar cosntante a sua presença na consciência da humanidade.”11
“ [...] a memória está presente na multiplicação dos museus, nas ‘instituicoes de memória’, centros de memória, arquivos, memórias de empresas, memórias de partidos, de igreja, de famílias, de clubes, de ONGs [...] – são todos recursos mobilizadores de memória.”12.SA
“A memória não é um receptáculo passivo – a memória é ativa. Só podemos nos lembrar das coisas que significam algo para nós. Assim, organizamos nossas memórias de um jeito que elas façam sentido antes que nos lembremos das coisas. Memórias sem sentido são não-memórias, coisas de que não podemos nos lembrar. Mas ‘significado’ não é simplesmente uma categoria subjetiva [...]
Não nos lembramos das memórias que não têm significado para nós. Organizamos a memória da maneira como desejamos falar sobre elas. E como essas memórias são organizadas? Elas podem ser ordenadas logicamente, com certeza, mas não acho que nós as organizemos sempre de maneira ordenada. Se vocês examinarem a memória que têm dentro de si, verão lembrar-se de músicas, ritmos e, sobretudo, histórias, que são uma das coisas mais humanas que existem.”13
“Não é possível entender a memória sem entendê-la, também, e talvez mais ainda, como mecanismo de eliminação: a memória é um mecanismo de esquecimento programado.”14
“Toda memória é social. Tudo bem – mas por quê? Porque pressupõe interlocução. [...] existe memória individual, lembrança, rememoração [...] e só quando se socializa é que ela pode aparecer.”15
“[...] todos os projetos de construção e reforço de identidade são programas de transferência de memória.”16
“ [...] as memórias não se organizam a partir de uma raiz comum, não sobem se abraçando conjuntamente, em um troco forte, e lá em cima também não se desenvolvem em galhos. Embora desconfortável, é necessário que nos livremos da imagem da árvore, uma vez que ela é homogênea e monolítica, se prestando a bem representar a história das grandes narrativas e de suas supostas continuidades. A imagem que propomos aqui como mais adequada para expressar a idéia da construção das narrativas é muito menos bonita, mas muito mais dinâmica – é a imagem do bulbo. O que é o bulbo? A raiz da samambaia é rizomática, ela se espalha, não tem hierarquia de uma raiz comum, não tem um tronco organizador e não tem os galhos todos conectados. O que ela tem são bulbos que se estabelecem e se espraiam através dos rizomas, das raízes. Elas vão se desenvolvendo como em uma rede e vão se reconectando – o rizoma se expande e forma outro bulbo, depois se expande para outro lado, em busca do sol, tavez, e forma outro Bulbo. Mais tarde, esses pequenos filamentos vão se desenvolvendo em outra direção, talvez em busca de um nutriente, de um mineral, e forma outro bulbo. Quando os vemos, temos algo que é quase como uma rede – filamentos e bulbos. O rizoma é um tipo de caule que cresce horizontalmente; em geral é subterrâneo, mas também pode ter porções aéreas. A base do rizoma é a impermanência e a mutabilidade. Seu principio de funcionamento, se espraiando e se reconectando, formando aquilo que nós, trabalhadores da cultura, podemos pensar como pontos de vista. Que não são hierárquicos – são conectados, geograficamente diferenciados, mas não têm hierarquia. E aqui começamos a pensar em diferentes vozes, diferentes enunciados, diferentes formas de perceber o mundo social, o mundo da política, da cultura, e diferentes processos de construção de identidades sociais. Cada bulbo pode ser um grupo social em determinado momento histórico, pode ser uma classe, um partido, uma associação, m individuo. Começamos a trabalhar com uma variedade de vozes não hierarquizadas. Nossa visão, embora muito mais complexa, talvez comece a ser um pouco mais democrática eu a da árvore.”17
Em Deleuze e Guattari, em Mil plantôs. Capitalismo e esquizofrenia há uma referência a um livro raiz.
“[...] só podemos ver as imagens do passado quando nos situamos na história. A história sempre se constitui pela relação entre o presente e seu passado, quer dizer, cada presente tem um passado, porque o universo da experiência humana é basicamente inesgotável.”18
“É apenas a partir da estrutura conceitual da nossa linguagem que o mundo se torna mundo para nós. Sem a roupagem lingüística, aquilo que percebemos por meio dos nossos órgãos do sentido constitui apenas um emaranhado de intuições cegas. Esta idéia, que já pode ser lida em Kant, foi aprofundada no chamado romantismo alemão.”19
“A teoria da memória e da reminiscência de Aristóteles – que esteve na base das concepções de memória de toda a Idade Média até a Modernidade – pode ser reconstruída a partir de sua teoria do conhecimento exposta no tratado De Anima. Na sua concepção dinâmica do nosso aparelho cognitivo, os cinco sentidos são responsáveis pela captação das sensações e seu transporte para a faculdade de imaginação, que, por sua vez, fornece as imagens que constituem a matéria bruta da nossa faculdade intelectual. A parte da alma que cria imagens é considerada, em Aristóteles, como um a priori para o processo intelectual mais ‘elevado’. Afinal de contas, para ele ‘a alma nunca pensa sem uma imagem mental’ (De Anima 432 a 17; cf. Yates, p. 32); ainda “ [...] mesmo quando pensamos de modo especutativo, devemos ter uma imagem mental com a qual pensamos (ibidem, 432 a 9).”20
“Aristóteles estruturou, no plano tópico de sua teoria, os três sentidos internos (memória, imaginação e razão) como contraponto dos cinco sentidos externos, e os localizou em três câmaras do cérebro. Os sentidos internos seriam as faculdades da alma que trabalham as informações que vêm do exterior. Essa arquitetura anímica manteve-se constante por séculos afora. Na câmara posterior encontrar-se-ia a imaginação, que realiza a tradução dos dados dos sentidos em imagens, mas que também gera imagens independentes, como ocorre quando sonhamos. Na câmara mediana teríamos o cammon sense, que compara os dados e gera juízos. Na ultima caramra localizar-se-ia a memória, que é vista como um reservatório (Assmann, p.30)”21
“Em seu pequeno tratado De memoria et reminiscentia, Aristóteles nota, no entanto, que a memória, devido ao seu caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma que a imaginação (De memoria et reminiscentia, p. 450 a 24): ela é um conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, mas com um adicional temporal – trata-se de um conjunto de imagens de coisas do passado (sendo que esse dado temporal que Aristóteles destacou nessas imagens só veio a ser realmente levado a sério na tradição com a obra de Santo Agostinho). Graças a essa relação da memória com as impressões sensíveis, ela não é exclusividade dos seres humanos (em contraste com a recordação ou reminiscência, que lhes é exclusiva).”22
“Aristóteles compara a imagem mental gerada pela impressão sensual a um retrato pintado que permanece na memória: ‘pois – o estímulo produzido imprime uma espécie de semelhança com o percebido, exatamente como nós selamos com sinetes dos anéis.’ (De memoria et reminiscentia, 450-30 s.). Ele concebe, portanto, a formação da imagem mental como o movimento de impressão de uma imagem na cera por um anel que sela. Como na famosa descrição de Teeteto de Platão, para Aristóteles também cada pessoa possuiria uma determinada consistência dessa superfície mnemônica, que é a aproximada da noção de bloco de cera, o que determina a sua capacidade de reter mais ou menos informações.”23
Para Aristóteles, “A reminiscência é definida como a recuperacao intencional de um conhecimento ou de uma sensação. Ela é marcada por dois princípios: o de associação e o de ordem. A associação pode se dar via similaridade, inversão ou por contigüidade. Por outro lado, a ordem da recordação pode seguir a ordem da apreensão dos objetos: é fácil nos recordarmos do que segue uma ordem, como ocorre na matemática. Aristóteles menciona também a utilização de locais para recordar coisas, ou ainda fala em possíveis séries, como na sucessão de letras a b c d e f g h, sendo que ele destaca que também são possíveis erros no processo de recordação assim ordenado.”24
“Em Aristóteles, portanto, encontramos tanto uma concepção da memória como escritura na nossa placa mnemônica das impressões do mundo, como também uma forte concepção de reminiscência ou recordação, como um procedimento de leitura – e, como ~e evidente, a comparação com as letras do alfabeto não ~e de modo algum casual aqui. O elemento ativo da memória é comparado ao modo de ação de um pesquisador ou viajante que busca a inscrição mnemônica pelos labirintos de nossa memória-arquivo. A noção de associação também é essencial no nosso contextoa: estrutucao da recordação – e portanto do discurso de modo geral, que sempre está recuperando informações arquivadas – funciona a partir de um principio de leitura de semelhanças.”25
O estudo da concepção de memória em Aristóteles nos ajuda a compreender a relação entre a nossa linguagem e uma certa espacialidade da memória. “[...] não podemos pensar a linguagem como sendo meramente um fenômeno que se dá no tempo: ela também ocorre em um determinado espaco. É moldada e ao meso tempo forma este espaço.”26
“No século XX podemos observar um gradual aumento dos discursos sobre a memória. Este fenômeno na verdade deu continuidade a certos movimentos intelectuais já esboçados no século XIX. Se na filosofia Nietzsche plantara o grão do pensamento anti-historicista, na literatura a ‘crise do verso’ diagnosticada por Mallarmé em 1895, na sua palestra ministrada na Universidade de Oxford (e cujas conseqüências estão inscritas na poesia imagética do seu ´Coup de dês’), também anunciou um corte com a tradição do realismo do romance do século XIX. Baudelaire, como é sabido desde um conhecido ensaio de Benjamin de 1939, foi o poeta lírico que soube incorporar o choque característico da Modernidade na sua poética; já com Mallarmé a literatura explodiu em uma nova constelação espaciotemporal que se desdobra hoje em dia nas novas criações poéticas digitais. Nas artes plásticas as vanguardas em poucos anos no início do século XX deram conta de revolucionar a noção de arte: cubismo, futurismo e surrealismo instauraram regras tão novas para o jogo artístico que se pode dizer que as mudanças acumuladas em uma década foram mais amplas que as ocorridas nos duzentos anos, ou mais, anteriores.”27
“... essa cultura da memória nasce da resistência ao esquecimento ‘oficial’ e a uma ‘cultura da amnésia’, do apagamento do passado, que caracteriza nossa sociedade globalizada pós-industrial”28
“A rememoração é um processo que não é possível na sua totalidade – tem sempre um momento de limitação.”29
“Em suas célebres teses ‘Sobre o conceito da história’, escritas em 1940, Walter Benjamin declara: ‘Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo’. Essa afirmação é uma recusa clara ao ideal da ciência histórica que Benjamin, pejorativamente, qualifica de historicista e burguesa, ciência essa que pretende fornecer uma descrição, a mais exata e exaustiva possível, do passado. ”30
“Nós articulamos o passado, diz Benjamin, nós não o descrevemos, como se pode tentar descrever um objeto físico, mesmo com todas as dificuldades que essa tentativa levanta, das classificações de Lineu aos Métodos de Francis Ponge.”31
“A ‘história’, acrescenta Benjamin, ‘é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas aquele preenchido pelo tempo-agora [Jetzteit]”32
“ [...] se, ‘por definição, o historiador vive no relativo’ e se ‘ele não pode ´[...] dizer tudo, sua luta não pode ter por fim o estabelecimento de uma verdade indiscutível e exaustiva. Seria lutar em vão porque a verdade histórica não é da ordem da verificação factual (unicamente possível para as ciências experimentais... e mesmo para elas discutível). Mas o conceito de verdade não se esgota nos procedimentos de adequação e verificação, procedimentos esses cuja impossibilidade prática no caso do historiografia da Shoah fornece, justamente, seus ‘argumentos’ aos revisionistas.”33
“O pensamento de Ricoeur também nos lembra, que a história é sempe, simultaneamente, narrativa (as histórias inumeráveis que a compõem; Erzahlung, em alemão) e processo real (seqüência das ações humanas em particular; Geschitchte), que a história como disciplina remete sempre às dimensões humanas da ação e da linguagem e, sobretudo, da narração“34
“Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão freqüentemente a imagem – o conceito – de rastro? Porque a memória vive essa tensão entre presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente todo o campo metafórico e semântico da escrita, de Platão a Derrida. Se as ‘Palavras’ só remetem às ‘coisas’ na medida em que assinalam igualmente sua ausência, tanto mais os signos escritos, essas cópias de cópias como diz Platão, são, poderíamos dizer deste modo, o rastro de uma ausência dupla: da palavra pronunciada (do fonema) e da presença do ‘objeto real’ que ele significa.”35
Abrace abraço!webSigo aqui dor ieto ][[ marem
em
“Se, [..], verdade implica duplicidade, como movimento que busca adequação entre as coisas e os nomes, natureza e linguagem, para Benjamin ela é também algo que se encontra disperso nas coisas e na linguagem, como unidade potencialmente resgatável a partir de seus fragmentos. (nota 47)”36
“[...] É verdade que o leitor moderno quer se ver refletido, em sua dimensão profundamente subjetiva, no espelho do romance; entretanto, ao mesmo tempo em que o romance acena com sua própria dissolução e com a desintegração do sujeito que nele se vê refletido, ele também promove um distanciamento crítico, oferecendo assim uma nova visão do sujeito e da realidade.
A visão moderna abriga resíduos de antiguidade: a imagem de que se vale Benjamin, comparando o leitor do romance ao fogo que consome a lenha não só evoca a semelhança do leitor a dois outros tipos de subjetividade, o sujeito amoroso e o sujeito místico (cf nota 82), como também remete, por um lado, à antiga tradição humoral da melancolia como afecção proveniente de uma falta de calor no organismo e, por outro, à tradição de se contar histórias ao redor do fogo. Só que o fogo que arde nas proximidades do leitor do romance é o fogo domestico, que arde comportadamente nos limites da lareira de uma confortável residência burguesa.”37
“O romance oferece espaço para a melancolia do narrador, como se oferecesse espaço para os resíduos de oralidade das antigas formas narrativas. Se todas as narrativas se constituem, por definição, na tentativa de recuperar por meio da linguagem e da memória, algo que já deixou de constituir parte da experiência presente, isto é, vivências, fatos, acontecimentos passados, é o resíduo da figura de narrador que fala Benjamin – metonimicamente tão eficaz quanto a figura original perdida [...]”38
“Se, para Benjamin, a memória é responsável pela conservação do narrado e por assegurar sua transmissão futura, é preciso levar em consideração o que lhe permite existir: a experiência da percepção e do apagamento, ou melhor, da neutralização das percepções por meio da vivência de choques tornados elementos da experiência e também pela experiência do esquecimento, isto é, pela impossibilidade de reativar conscientemente imagens do passado. [...]
Benjamin recorre a Freud, a Bérgson e a Proust para explicar o complexo mecanismo da memória e sua articulação com a temporalidade, e sua relevância na poética de Baudelaire. O recurso a Freud serve a Benjamin para justificar, por meio da idéia da consciência como barreira de proteção contra estímulos externos, a importância da vivência do choque como possível, graças a uma falha nesse sistema de proteção e que dá origem, entre outras coisas, ao próprio trabalho artístico. É no embate entre a defesa contra os estímulos e a percepção de que tais estímulos o afetam que a consciência (e sua precária identidade) do poeta se constrói. Essa construção só pode ser levada a cabo de maneira dupla. Em Baudelaire, essa duplicidade se manifesta de múltiplas formas. Benjamin destacou algumas delas: ‘Baudelaire fixou esta constatação na imagem crua de um duelo, em que o artista, antes de ser vencido, lança um grito de susto. Esse duelo é o próprio processo de criação. Assim, Baudelaire inseriu a experiência do choque no âmago de seu trabalho artístico’.[...] ”39
“[...] A subjetividade moderna se define, pois, por um lado, por uma relação diversa com as coisas, pela qual o sujeito, ou se torna objeto, ou se dissolve em sua própria subjetividade, e as coisas se humanizam, tornando-se capazes inclusive de ‘pensar’; por outro lado, é ela que identifica nas cosias traços de um tipo de pensamento musical e pitoresco, ‘sem angustia, sem silogismo, sem deduções’ e que aparece como desejável. Na interpretação de Benjamin, essa reversão das relações sujeito-objeto não pode ser entendida senão pelo recurso às tremendas modificações introduzidas pelo capitalismo industrial na vida social e na paisagem urbana de Paris do século XIX. Mas esse recurso não se deixa reduzir a relações de causa e efeito, nem admite explicações de tipo psicológico como assinalou Pensky (cf. nota 94), já que as fontes da poética baudelariana se encontram precisamente nos diferentes modos de relação que se estabelecem entre visão poética e seus objetos.”40
O que é moderno? O que é modernidade? Qual o papel da arte e da filosofia numa sociedade industrial contemporânea? Textos escolhidos e (ou) redigidos por Ronaldo Campos com o objetivo de pensar\problematizar a contemporaneidade utilizando como ferramenta a sensibilidade estética.
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Assinar:
Postagens (Atom)
Quem sou eu
- Arte, Filosofia e Modernidade
- Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
- Graduado nos cursos de Filosofia e História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Filosofia da Arte e Estética pela mesma Universidade. Atualmente sou professor assistente b do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). Tenho experiência na área de Filosofia, com ênfase em História e Filosofia da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: fundamentos filosóficos da educação, introdução ao pensamento científico e filosofia da ciência, cinema e artes visuais, aspectos formais da arte, criatividade, processo de criação, estética da formatividade de Luigi Pareyson, cultura e modernidade brasileira.